"Por mais que hoje eu esteja confortável na minha pele e sexualidade, tem gente que não está"
- Daiane Guimarães Cruvinel
- 29 de nov. de 2020
- 8 min de leitura

Manuel Victor Hipolito Coelho tem 31 anos, é um homem gay cisgênero e é servidor público municipal, como Assessor de Políticas Públicas LGBTQIA+. Só para relembrar, o termo “políticas públicas” representa um conjunto ou vários conjuntos de programas, ações e decisões tomadas pelos governos, sejam ele nacionais, estaduais ou municipais, que têm o objetivo central assegurar determinado direito em ser cidadão para a população em geral, para vários grupos, ou pra determinado segmento social.
Quando falamos sobre a comunidade LGBT encontramos uma falha imensa no quesito direito. Por conta de sua orientação sexual, o indivíduo deixa de ser um cidadão comum e passa a pertencer a uma classe imaginária criada por pessoas que não entendem nada de nada. E aí entram as políticas públicas, para lutarem por essas pessoas, ativarem seus direitos e dar suporte àqueles que são proibidos de serem cidadãos comuns.
Victor se dispôs a nos contar um pouco o seu trabalho e da sua história de vida durante uma entrevista, a fim de inspirar outras pessoas e registrar sua trajetória. Então vem com o site Mundo LGBTQIAP+ acompanhar essa entrevista na íntegra.
Desde muito cedo Manuel percebeu que não se encaixava no padrão afetivo heteronormativo da sociedade. Claro que ele ainda não sabia quais nomes dar aos seus sentimentos, mas sempre era apontado na escola e por parentes como a “menininha”, o “gayzinho”, o “viadinho”, entre outros.
Conforme o tempo foi passando e ele foi crescendo, percebeu que ser uma criança afeminada, igual ele era, e sentir atração por meninos, era além de errado um pecado.
“Fui criado por uma mãe extremamente católica e um pai espírita. Minha mãe sempre foi muito rígida. Acredito eu que ela, percebendo que eu já era gay, monitorava todos os meus passos e minha rotina diária. Meu jeito de falar, de andar, com quem eu brincava, tudo. Meu pai já era mais tranquilo e muita das vezes me defendia de falas preconceituosas que eu nem entendia, mas que eram direcionadas a mim.
Com o tempo, por causa do patrulhamento da minha mãe, fui me fechamento e me tornando uma pessoa muito tímida e introspectiva. Ficava o dia inteiro no quarto e me afundei nos meus hobbies: leitura em quadrinhos e filme de animes. Junto disso busquei na religião uma forma de me “livrar” da homossexualidade. Fiz estudo com testemunha de Jeová, catequese, virei evangélico, mas enfim nada resolveu, óbvio.
Com 14 anos decidi começar a trabalhar para juntar dinheiro. Com 15, diante de tanta pressão em casa, não podendo me expressar e ser abertamente que eu era, me assumi primeiro para o meu pai. Ele me deu apoio incondicional e inquestionável. Em seguida para minha mãe, que reagiu da pior forma possível, com agressão e culpando meu pai por ser ausente.
Diante disso, como eu já tinha um dinheiro, resolvi ir para fora do país e informei meus pais. Foi um informe e não um pedido, eu decidi morar fora e fui. Minha mãe foi contra, mas eu já tinha tudo planejado, me mudei para a Europa. Lá terminei meus estudos no ensino médio e fiz um curso técnico. Aprendi muito sobre diversidade. Aprendi a me aceitar como gay, a reconhecer privilégios e a como usá-los em prol de uma sociedade mais justa.
Lá me casei com um homem que também me ensinou sobre o maior ato de resistência política contra um mundo preconceituoso: estudando e tendo sucesso. Estive na Europa na crise mundial de 2008 a 2010. Participei de atos e protestos políticos. Comecei minha construção político-social lá. Morei na Espanha por quase 5 anos, com uma juventude politizada e engajada socialmente.
Voltei para o Brasil idealista. Comecei a universidade e em 2012 diante de casos de corrupção do governo Marconi, eu e alguns amigos da universidade fizemos o protesto Fora Marconi. No primeiro, tivemos 5 mil pessoas, no segundo 20 mil e no terceiro foi um protesto extremamente grande, não sei se algumas pessoas se lembram, mas reunimos 50 mil pessoas no centro da cidade.
Diante disso ganhei notoriedade de alguns políticos e partidos. Recebi alguns convites, um deles para trabalhar na CPI do congresso que investigava o governador na época. Uma deputada do MDB me convidou. Junto disso comecei minha militância em direitos humanos. Passado o tempo fui trabalhando em algumas campanhas do MDB e em 2016 eu coordenei as mídias sociais do candidato Íris Rezende (eu trabalhava com a esposa dele, dona Iris, quando ela era deputada federal). Quando ele venceu, ele me chamou para ocupar o cargo da Assessoria LGBT.
Já recebi muitas críticas por fazer parte de um partido mais conservador e recebi convites de partidos mais à esquerda, mas eu tenho uma teoria comigo. Eu sou de esquerda, se eu for para esses partidos que diferença eu irei fazer? Minha militância tem que ser aqui no MDB, juntos desses conservadores. Eu seria um acomodado se saísse dele. Eu não morro de amores pelo partido, mas foi aqui que articulei políticas para a pauta. Foi por estar no MDB que consegui ser ouvido por políticos que talvez nunca escutassem sobre a pauta LGBTI. Foi por ter trabalhado na gestão do Íris e do MDB que o Maguito me chamou pra contribuir no plano de governo na parte de direitos humanos. E eu faço as críticas internas partidárias que deve ser feita. Inclusive já levei um tiro (que não acertou) por causa disso, quando eu flagrei um deputado estadual agredindo uma mulher no diretório do MDB, eu tentei intervir e quase levei um tiro do segurança desse deputado.
Então eu levo muito a sério minha militância pois acredito que ela deve alcançar quem realmente precisa. Hoje vejo que muita coisa validou por eu estar onde estou hoje e saber que, por mais que hoje eu esteja confortável na minha pele e sexualidade, tem gente que não está e eu devo contribuir para que isso mude. Um pouco que seja.”
ENTREVISTA NA ÍNTEGRA:
1. Falando um pouquinho sobre sua vida pessoal, já teve alguma vez que você se sentiu excluído de determinado ambiente profissional por conta da sua orientação sexual?
Não teve nenhuma vez que me senti excluído até porque não me deixo sentir assim, mas claro que já me enfrentaram, ainda mais no meio político que é bem conservador e movido a interesses próprios. Uma vez um vereador comentou com uma pessoa que não sabia porque eu estava no meu atual cargo sendo que sou gay assumido e tinha um monte de vereador com pessoas para indicar em cargos na prefeitura. Ou seja, posso ter o estudo que for, ter experiências e ser profissional, mas o fato de ser gay assumido me desqualifica. Minha reação foi ir na tribuna da câmara municipal e denunciar a fala preconceituosa.
2. Como foi se tornar assessor de políticas públicas para LGBTs na prefeitura de Goiânia? É difícil lutar pelos direitos da comunidade?
Foi bem desafiador por vários motivos. O primeiro porque eu não era conhecido da militância histórica da pauta LGBTI da cidade, para eles eu era só mais um gay branco padrão de classe média no cargo para tampar buraco. Eu não era ativista especificamente da pauta LGBTI e sim de direitos humanos em forma geral. Mas eu sempre falo que ser gay assumido no meio político em um partido igual o MDB, que é mais conservador, já é militância, é um ato político por si só. Porém superado isso as entidades e pessoas da militância se tornaram parceiras importantes e cruciais no que se deu a seguir, que foi implantar projetos em uma cidade que deu 70% dos votos ao Bolsonaro e vê políticas voltada para esse público como dinheiro público jogado fora. Mas hoje fazendo um retrospecto, nenhuma outra administração municipal fez tanto pela pauta. Focamos no que mais precisam, que são os LGBTI’s negros da periferia. Eles são os mais marginalizados.
Entendo que sou privilegiado em vários aspectos e quero usar esses privilégios, que são históricos e estruturais, para dar voz a quem não tem. Temos um cenário que o próprio meio LGBTQI de Goiânia é conservador e vê a pauta como desnecessária e desconstruir isso é uma luta. Acham que o LGBT quer saber só de Parada “Gay” e mais nada. Mas as pautas de direitos humanos elas são transversais, trabalhamos com outras secretarias e órgãos. Junto da secretaria de Segurança Pública do Estado, de Educação, Saúde, junto do Tribunal de Justiça, Ministério Público e OAB e hoje formamos uma rede voltada para esse segmento.
3. Como funciona o projeto Mutirão de Retificação de Pré nome e Gênero de pessoas Trans e Travestis? Quando e porque ele surgiu?
O projeto de Retificação de nome de pessoas Trans surgiu no final de 2017 depois que o STF deu um parecer, com entendimento, falando que pessoas transexuais e travestis não precisavam mais entrar com processo judicial para fazer a mudança, e nem precisava mais também ter feito cirurgia, bastava ir no cartório onde foi registrado e pedir a alteração.
Mas mesmo assim era um processo caro e demorado, exige muitos outros documentos e certidões e geralmente essa população é carente e não tem acesso a serviços públicos. Então conversei com ONG’s que atendem pessoas Trans, pedi para fazerem esse levantamento de quem precisava e tinha interesse. Depois me reuni com a Defensoria Pública pois eles podem emitir um documento que garante a gratuidade do processo junto aos cartórios. E fomos a Polícia Civil que confecciona a Identidade. Pois depois da nova certidão elas teriam que fazer uma nova identidade.
Decidimos fazer o primeiro em 2018, no dia nacional da Visibilidade Trans que é 29 de Janeiro. O levantamento inicial mostrou que iríamos atender em torno de 50 pessoas. No final de dois dias de mutirão atendemos 126 pessoas. Inclusive pessoas de outras cidades e estados. Fizemos uma recepção para elas com café da manhã e depois uma palestra falando que pessoas Trans tem que se sentir parte da sociedade e ocupar espaços públicos pois é o correto, são cidadãos também.
Foi muito emocionante, escutamos muitos relatos de pessoas Trans que nunca se quer tinha ido a algum órgão público e estava vendo novas possibilidades com a mudança do nome, pois tudo mudaria. Poderiam mudar a carteira de trabalho, não teriam constrangimento em entrevistas e até na sala de aula também.
4. Como funciona a burocracia para aprovação de políticas públicas que garantam os direitos LGBT?
A burocracia para aprovação de qualquer projeto tem nome: poder econômico. E infelizmente lutamos contra o enorme poder econômico religioso. E o lobby contra políticas LGBTI é grande e a maioria dos políticos se rende a ele. Se não se rende ao poder econômico, se rende a pressão das redes sociais.
5. Como são suas redes sociais? Você tem liberdade para expor sua vida pessoa ou tem receio de prejudicar seu lado profissional por conta da sua orientação sexual?
Minhas redes sociais são minhas e posto minhas opiniões e minha rotina sem medo. Uma vez me denunciaram para a controladoria do município por um post contra religiões que eu fiz, pois sou ateu, falando que um servidor público não pode falar assim em redes sociais. O prefeito foi taxativo no despacho “o Manuel Victor tem total liberdade de expressão em seu ambiente social seja virtual ou não, sendo delimitado por sua profissionalidade, pois a administração pública é pautada pela razoabilidade e impessoalidade”, ou seja, desde que minhas convicções não interfiram no meu trabalho, está tudo bem. Eu posso expor meu ateísmo desde que no meu trabalho não trate alguém diferente por conta de sua religião, diferente do que vemos de religiosos fazer quando usando de sua crença em ambiente de trabalho, ofendem aqueles que não possuem religião alguma.
6. Já foi atacado na internet por conta da sua orientação sexual? Você se posiciona nas redes sociais sobre as injustiças e os direitos das minorias LGBT?
Sou atacando constantemente por conta da minha orientação sexual, minha reação é ser mais lindo kkkk brincadeira. Não dou palco para quem pratica hate na internet, eles se alimentam disso. Se você não corresponde eles desistem.
Eu me posiciono sempre que necessário. Me posiciono também contra algumas pautas adotadas pela comunidade LGBTI que vejo como desnecessárias e desagregadoras.
Comentário da escritora: como é bom conhecer pessoas como o Manuel. Assistir um LGBT que se sente privilegiado saindo de sua zona de conforto e lutando pelos direitos daqueles que ainda não conseguem exercer sua cidadania é inspirador e também um choque de realidade para a maioria dos héteros que dizem respeitar e achar a causa LGBT importante, mas que não auxiliam na mudança. Eu agradeço imensamente a você Victor, primeiramente pelo trabalho que você faz, enfrentando com frequência episódios desconfortáveis, e depois por compartilhar sua história conosco. Quando lutamos por nós temos amor próprio, quando lutamos pelo próximo, somos grandes, e quando inspiramos pessoas através da nossa luta, nos tornamos gigantes.
Obrigada por ser um gigante neste mundo que se encolhe cada dia mais no preconceito e na intolerância.
Lutas que só ganham visibilidade pela força e pela coragem de enfrentar as barreiras que a sociedade ainda impõe, mas que aos poucos vão se desmoronando pelo entendimento de que a liberdade e o amor não se cabem em regras.